Ela tem 93 anos. Ele tem 91. Juntos, têm mais de 70 anos de vida em comum. Setenta! Têm um filho, um neto e já bisnetos; todos mais ou menos longe, nas suas vidas, nas suas rotinas e trabalhos onde pouco espaço existe para dois velhos. Telefonam muitas vezes, zelam para que nada falte. Mas o que mais faz falta é a suas presenças, a mão que ampara e cuida, o toque, o olhar directo e verdadeiro.
Juntos têm mais de 70 anos de vida em comum! Não conseguem precisar quantos mais exactamente pois antes de se casarem já coexistiam. Setenta anos é uma vida completa. Seguramente haverá muitos outros casais com esta longevidade na relação. Conheço alguns, conheço as suas dificuldades e as suas tristezas. Mas não conheço nenhum que tenha o amor, a dedicação, a cumplicidade e o carinho que estes dois seres nutrem um pelo outro. É muito bonito de se ver. E muito triste, nesta fase final. É muito raro de se encontrar algo assim pois tudo neles é genuíno. Nada é forçado ou púdico ou falso.
A morte anda próxima. Ele, bem mais conservado, idade real não correspondente com a idade aparente, mas infelizmente portador de diversas patologias incapacitantes e gradualmente terminais. Está no seu limite. Sabe que o fim está próximo e sabe que ela o sabe; sabe que eu sei apesar das palavras animadoras. Ela, mais marcada pela idade, pequenina, magra, corpo vincado pelo tempo, rugoso, uns olhos vivos e simpáticos, um sorriso que aparece facilmente, uma palavra sempre amistosa e agradável nos lábios, vivaça; conhece bem o mundo de hoje e sabe brincar com ele; sabe também chorar e sentir tristeza por coisas que no seu tempo não eram tão banais como hoje. É independente, cuida da casa, do marido dependente, faz as compras e sabe Deus mais o quê. A casa está sempre imaculada, arranjada, muitas fotografias e quadros antigos sem pinga de pó.
A morte anda próxima. A expressão dele vai-se tornando gradualmente prostrada e baça. Está no limite e sabe disso. Ela aproxima-se dele, agora triste, tentando conter o choro. Diz que só vai ali ao lado buscar o almoço, como se quisesse dizer-lhe "Espera por mim. Não te vás sem a minha presença". Pega-lhe delicadamente o rosto macilento e pálido nas duas mãos e beija-lhe os lábios. Ele corresponde e olha-a directamente nos olhos com carinho e tristeza. E nem o mais apaixonado dos actores no mais romântico dos filmes olha assim a sua amada. Garanto. "Vou deixar-te sozinha", parece dizer. E percebe-se que essa é a única razão pela qual ainda não partiu. Ela vai buscar um saco para trazer o almoço e observa-o mais uma vez, deitado no cadeirão. Saí comigo para a rua. "Ele vai morrer. O meu querido marido vai morrer", chora ela apoiando-se no meu ombro. Amparo-a e digo coisas banais, das quais já nem me recordo. Mas recordo-me de sentir uma pontada de ciúme. Ciúme sim! E tristeza. Quantos de nós temos oportunidade de viver algo assim? Todos choram os cônjuges, é certo. Uns mais do que outros. Mas raramente o fazem por amor verdadeiro. Fazem-no por egoísmo, medo da solidão ou mesmo por alívio. O amor pode até estar lá mas não é assim exprimido ou sentido, como se ainda fossem dois jovens apaixonados.
A morte anda próxima. E eu queria tanto fazê-los compreender a sorte que tiveram por terem vivido assim, uma vida em comum plena, seguramente com as suas dificuldades, superadas de uma forma ou de outra. Mas não consigo. Como explicar o sentido da ausência, da morte ou mesmo da razão de viver depois de perder o outro? Quando para eles, viver sem o outro, não faz sentido nem tem razão.
A morte anda próxima. E temo o dia. A frieza e a distância treinada e ganha durante anos perante o fim da vida algum dia terá de cessar, nem que seja por momentos, para dar vazão à sensibilidade e humanidade.
A morte anda próxima... e eu guardar-vos-ei sempre em mim. Como guardo poucos. Como pessoas únicas e difíceis de encontrar. Bem hajam. Por me fazerem reacreditar mais um pouco.